Por Eurico Carrapatoso
«Les oiseaux sont des artistes bien plus grands que nous, les humains». Esta frase de Olivier Messiaen, compositor francês novecentista de obra façanhuda, é curiosa. Naïveté em estado puro, um dito azul-bebé, dir-se-ia no regaço da sinestesia reclamada pelo compositor que via cores precisas na música.
Na busca de um efeito retórico? Mais parece. Fosse uma afirmação feita num registo sério e ficaria mais intrigado. Isto porque tal frase, lá no fundo do fundo, parte de uma visão da arte que não era, por certo, a de Messiaen: arte nascida na pulsão da mimesis, arte como imitação da natureza e, na sequência expandida de tal raciocínio, na incapacidade de os humanos imitarem a natureza mais a passarada nela incluída, tamanha é a transcendência de seus cantos insondáveis.
E é bem verdade que são insondáveis. São bichinhos talentosos, sem disso terem consciência, contudo, apenas veículos de um dom que neles a natureza verteu de tal forma que, nos rituais de marcação de espaço, de luta pela comida, de conquista amorosa, de louvor da alvorada ou de acção de graças pelo ocaso, nos entontecem em tais gorjeios. Estes pássaros mais dotados que aqueles, também é certo: aqui mais pausados, além mais activos, estes mais rítmicos, aqueles mais melismáticos. Visto assim, mais parece que os bosques sombrios da doce França e arredores têm à sua disposição uma orquestra natural, sem consciência sindical, à qual nem sequer falta o oboé — o rouxinol — ou a flauta — o tal melro que Guerra Junqueiro bem conhecia
Vale a pena imitá-los, stricto sensu? Não. Transcender-nos-ão sempre nas suas soluções improvisadas ao momento, no rasgo de sua agilidade e leveza, na imponderabilidade que, no voo das suas asas, os aproximam ao céu como corpos celestes.
Mas daí a afirmar que são artistas maiores que nós, os humanos, tem muito que se lhe diga.
A arte tem fitos maiores do que imitar a natureza. Nem a vida, quanto mais a natureza. Disso se libertou já no Renascimento e no triunfo da depuração abstracta. Antes disso, já na Idade Média navegaram os compositores em mares intangíveis ao ouvido nu, alicerçando infinitos à altura dos pináculos das catedrais. Ars Nova, Ars Subtilior, assim nomearam os autores do trecento a sua arte, com consciência de seus achamentos.
A arte é o produto depurado da criação: passou pelas dores do desassossego, perscrutou o profundo da alma, roçou a loucura, e tantas, mas tantas vezes a ela se abraçou a fumar cigarros pensativos. Que se saiba, nunca um passarinho se deitou no divã de Freud. E não fuma cigarros pensativos. Não é louco, não perscruta o profundo da alma nem tem as dores do desassossego. Sabe lá o que isso é. Limita-se a chilrear, clamando pelo seu espaço, pela sua amada, pela sua comida. Tem essa ferramenta talentosa que encanta os humanos mas que nunca constituirá, na articulação de seus talentos espontâneos, um discurso coerente, consistente, formal, abstracto, intangível, inefável, enfim, um discurso feito arte.
«Les oiseaux sont des artistes bien plus grands que nous, les humains». Ter-se-á tratado de simples ironia? Bem provável. Quem sabe se o célebre compositor ornitólogo não queria afirmar, lá no fundo, no fundo, que «Les humains sont des artistes bien plus grands que vous, les oiseaux». Mas a banalidade seria tal, e de tal forma literal, que não haveria necessidade, tampouco coragem, de a escrever.
A arte não é grátis. A arte custa.
Citando Pessoa com dupla corruptela:
Sem a música que é o homem
Mais que a ave sadia,
Cadáver adiado que procria?
Eurico Carrapatoso
Lisboa, 1 de Outubro 2025