Obrigado, Carlos!
É assim que sinto que deve começar este texto. Porque o Carlos Avilez é um exemplo de amor ao Teatro como poucos. E falo do Carlos no presente porque ele está presente nas muitas memórias que temos de grandes espectáculos que encenou. Como esquecer os seus Ibsens, os seus Genets, ou esta última andorinha que ele sonhou para que depois a Cucha Carvalheiro fizesse voar?
O Carlos está presente na generosidade com que abriu portas aos mais novos num tempo em que era muito simples falar com os directores dos teatros.
E principalmente o Carlos Avilez está presente nos actores de tantas gerações que passaram pela Escola de Teatro de Cascais e se afirmam ou ainda buscam a afirmação de tão jovens, de tão curiosos por este estranho e maravilhoso ofício que é o teatro.
A escola que o Carlos fundou ajuda a que vejamos novas gerações de actores muito talentosos a brilhar um pouco por todo o país nos palcos de tantas companhias que, contra ventos e marés, apresentam propostas muito variadas. E essa diversidade é o que importa. O que importa é que o Teatro está vivo e, no frenesim das vidas instagramáveis, continua a ser o lugar onde o artista nos olha nos olhos e fala, sem filtros, sem photoshop, sem inteligência artificial. Só o actor. A palavra. O silêncio. O público.
Estas novas gerações de actores preocupam-me. Com os orçamentos exíguos das companhias, tem de se programar peças com poucas personagens, porque muito poucas vezes há orçamento para um elenco grande. Isto leva a que se eliminem personagens secundárias que tão enriquecedoras são para um espectáculo e tão importantes são para quem está a dar os primeiros passos no teatro.
Está na hora de os poderes olharem para estes problemas com mais atenção. Está na hora de parar com esta “lógica de programador” que leva a que as peças estejam em cena três ou quatro dias sem deixarem um espectáculo crescer, sem deixarem que o boca-a-boca funcione (e nós sabemos que, se o boca-a-boca sempre foi a melhor publicidade para um espectáculo de teatro, ainda o é mais nestes tempos de redes sociais). Se não tomarmos medidas rapidamente, estaremos a matar a hipótese de criar novos públicos, públicos mais jovens a quem não damos sequer a oportunidade de descobrir os mundos que se escondem num palco. No entanto, viveremos muito contentinhos connosco mesmos porque tivemos sempre casa cheia, sempre com os mesmos rostos sentados na plateia, sem nunca chegarmos a um rosto novo, a uma vida diferente.
Nos 50 anos do 25 de Abril, é preciso reclamar para o Teatro essa possibilidade de criar pensamento, de inventar questões, de não seguir a agenda dos governos nem dos partidos da oposição, de ser milagrosamente livre para questionar, para entreter, para emocionar e inclusivamente para não fazer nenhuma destas coisas.
A paixão de quem faz teatro é tão grande que, quando subimos para o palco, estamos sempre a inventar uma nova liberdade. Em cima do palco é sempre Abril. Somos livres, somos levados por uma paixão inquebrantável, uma súbita e constante curiosidade por tudo e por todos. E é por isso que só vejo um mundo possível através do Teatro. Ao olharmos com receio para o que vem acontecendo no mundo, reclamo para as tábuas do palco uma dimensão política de que ele talvez tenha andado afastado nos últimos anos.
Há uma criança a ser morta em Gaza a cada 15 minutos, as violações dos direitos humanos ultrapassam fronteiras impensáveis, os partidos de extrema-direita crescem em todo o mundo e, com este crescimento, põem em risco direitos que já considerávamos adquiridos. Não se pode fazer teatro como se tudo isto não existisse. Assim como, após Abril, foi necessário um Teatro de intervenção, penso que está na hora de voltarmos a usar o Teatro como instrumento de mudança do mundo.
Cedermos às lógicas capitalistas pela vaidade de termos “sucessos de público” leva a um esvaziamento completo dos palcos. Na minha juventude, quantas vezes estive em teatros quase vazios a ver espectáculos que mudaram para sempre a minha vida? É preciso reencontrar essa inquietação e fazer um Teatro que procure ser Teatro mais do que ser um grande sucesso. E isto não é nada contra o sucesso. É contra a “lógica capitalista do sucesso”.
Não quero terminar esta mensagem sem fazer um pedido aos poderes municipais. Um pedido que deveria ser uma exigência. E não peço para mim que isso me dá vergonha. Peço que encontrem um espaço à altura dos “Artistas Unidos”. Como todos sabemos, eles estão prestes a ficar sem casa. O tecido teatral português não se pode dar ao luxo de perder uma preciosidade como é aquela companhia onde vi alguns dos melhores espectáculos dos últimos anos.
É isso que me apetece: celebrar os obreiros deste ofício tão necessário ao mundo, aplaudir os jovens e os menos jovens que todos os dias esperam que as luzes se acendam para subir a cortina, vender bilhetes, limpar o palco, lançar um efeito de luz, tocar um instrumento e dizer a mesma frase vezes sem conta, sempre pela primeira vez.
Viva o Teatro!
Tiago Torres da Silva
Lisboa, 27 de Março de 2024