A propósito do Dia do Autor
Quando comecei a dar os meus primeiros passos na minha carreira de músico, recordo que me agradava muito especialmente poder improvisar ao piano.
Também me lembro de que o meu pai - que era advogado de profissão, mas tinha um óptimo sentido crítico para a música, conquanto nunca tivesse aprendido a ler pautas - cedo me fez uma pergunta fundamental:
- Isso que tu tocaste está escrito?
-Tenho as ideias mais ou menos na cabeça; mas…escrito, não está…- respondi-lhe.
- Então, se não está escrito, não existe.
Nesse dia, eu passei a encarar de outra maneira a minha profissão de compositor - e de autor.
Tal não implica que se desvalorize de algum modo a improvisação e se recuse a importância, por vezes transcendente, daqueles momentos certamente inesquecíveis que alguns geniais organistas (caso de um Bruckner de um César Franck ou de um Messiaen, entre outros) propor-cionaram a quem teve a sorte de os poder ouvir.
Contudo, mesmo admitindo, por hipótese, que Bruckner tivesse sido o maior compositor-organista de todos os tempos, as incontáveis horas de música que ele improvisou no órgão de Sankt Florian não constam do seu catálogo (assim como assim, já vasto…) de obras, o mesmo se passando com as legendárias improvisações de Bach, Mozart, Beethoven, ou dos grandes concertistas do século XIX.
Mesmo que existam hoje registos gravados, não se coloca nenhum opus à frente de uma improvisação.
Guardarei sempre no álbum mental das melhores memórias da minha vida, as muitas improvisações que tive o privilégio de fazer com o Carlos Paredes, tal como representa sempre para mim algo de extremamente significativo e enriquecedor poder improvisar com artistas de eleição como o acordeonista Paulo Jorge Ferreira ( para quem não saiba, é português e até vive por cá…), os pianistas brasileiros Luiz Avelar e Paulo Álvares, ou o violinista francês Gilles Apap.
São experiências extraordinárias. Mas, em minha opinião, não são esses momentos – também já horas, acrescente-se…- que fazem de nós verdadeiros autores.
Curiosamente, na sua origem, o caso do jazz foi bastante diferente, tratando-se aí de uma improvisação sujeita a várias e até apertadas regras antecipadamente previstas, pelo que, nessas circunstâncias, o reconheci-mento da obra como fenómeno consciente e voluntário já deverá encarar-se dentro de um critério muito mais inequívoco.
Quanto à música electrónica – que não é o mesmo que produzir sons electricamente amplificados ou mesmo vagamente modificados, será talvez útil lembrar -, trata-se também de um repertório que tem os seus códigos próprios de leitura e consequente inserção no futuro.
Para quem tiver dúvidas acerca da matéria – tanto na posição de defensor como na de opositor de uma estética, isso é outra questão… -, a audição de Mikrophonie I ou Mikrophonie II de Stockhausen ou de várias outras autênticas obras de Parmegiani, por exemplo, servirá como ele-mento esclarecedor acerca da concreta importância do acaso na criação artística.
Mesmo que esse acaso possa funcionar – e funciona, seja na impro-visação, seja na manipulação controlada de uma estrutura electrónica ou na execução de um instrumento acústico – temos de reconhecer que há pessoas claramente mais aptas a tirar bom partido da sorte.
No futebol, fala-se em estrela de campeões…
E o que se passa com os criadores musicais é também aquilo que se verifica com todos os outros autores, sejam eles pintores, escritores, cineastas, arquitectos, coreógrafos ou poetas: a sorte é companheira frequente – e porventura indispensável - da competência.
Em teoria, uma vez dominadas as técnicas, através de uma boa aprendizagem, a luz do talento e a força do trabalho funcionariam como garante de um certo nivelamento em termos de resultados.
Mas não é assim.
E termino, citando Herberto Helder quando escreveu:
(…) é fácil a rima em ão
Difícil é ver se a luz
Rima ou não rima com a mão.
António Victorino d’Almeida
22 de Maio de 2017